|
Colunas |
|
>> Colunistas > Lázaro Freire
Um psicanalista espiritualista numa sessão de daime / ayahuasca (diálogos) Publicado em: 13 de novembro de 2008, 13:54:49 - Lido 4764 vez(es)
--- Em voadores, "Daniel Dinizz" escreveu > Interessantíssimo tudo que você escreveu, Lázaro... Usei o daime > uma vez, mas pretendo usar mais. Na hora, eu tinha a certeza que > todas as respostas poderiam ser encontradas alí, tinha certeza que > havia entrado em contato com meu eu superior. Entretanto, é difícil > confiar até em si mesmo, quando se trata de substâncias que alteram > o estado de consciência, mesmo porque, ao ouvir relatos de outros > participantes, eu percebi que muitos deles passaram realmente por > uma experiência de alucinação
Lázaro Freire comenta: Oi, Daniel. Também já tive experiências interessantes no Daime, e outras nem tanto. Tenho minhas ressalvas. Mas o curioso é que, mesmo falando bem aqui e ali, se você coloca o outro lado (que existe e não é desprezível), você é mal visto, e sofre agressões. Acho que isso não tem nada a ver com Daime, está mais para o fundamentalismo. Mas quando isso se dá por uma substância que induz alucinações e fragmenta o ego/discernimento, fica um pouco mais complicado.
Em uma das vezes que usei, compreendi bastante o universo da LOUCURA, da psicose. Notei que na profissão já "julguei" muito os psicóticos, mas eles apenas tem uma vida mais lá no inconsciente do que aqui. Eu me via psicotizando dentro do daime. Me senti igual, percebi que a bolha em que vivem não é centrada aqui, apenas isso. Podem ter uma riquíssima vida lá, no mundo "sem ego" (e sem juizo, sem tempo, sem discernimento), onde eu engatinhava tentando me situar. Ainda assim, foi através da pequena e frágil luz da minha consciência que eu me situei lá, como aqui. Pode não ser a ferramenta de todos, mas é uma linda ferramenta, e não deve ser desprezada.
Enquanto eu andava ali, SENTINDO os efeitos da loucura, ouvindo as risadas com eco, notando a riquíssima e colorida VIDA que havia do lado de lá da lucidez, percebendo o mundo como muito mais do que o tempo e a razão, uma voz me dizia ao lado, em tom firme e ao mesmo tempo amoroso: "Você não quis estudar a LOUCURA? Não quer saber como é a PSICOSE? Você não é PSICANALISTA? Pois então veja, sinta, está aí a LOUCURA. Agora você pode a compreender."
Por um lado, saí dali respeitando muito mais a psicose. Vi todos como iguais, sim. O psicótico tem o centro de seu mundo em um ponto bem "acima" do material, do físico, do temporal - e, portanto, no coerente. Uma pequena parte de sua esfera desce até aqui, de vez em quando, e não consegue formatar tudo que vê e vive do lado de lá. Não quer dizer que seja pouco. Também não é só por isso que seja muito. Jung também psicotizou, e disse que só descendo à consciência conseguimos reunir, compactar e expandir nossos conteúdos. Reencarnar é fundamental, e é melhor que este ego seja bem estruturado.
Mas em outra via, entendi também que aqueles psicóticos dali não eram exatamente psicóticos comuns. Tudo aquilo que "me mostravam" não era um hospício, e sim um rito religioso A PARTIR da ingestão de uma substância que contém diversos alcalóides. Aqueles "loucos de deus" não eram ramakrishnas, nem iluminados, nem malucos por definição. Eram pessoas que viviam dificuldades aqui, neuróticos como eu e você, que buscavam uma experiência de êxtase após minutos da ingestão de um psicotrópico. Ao sair do transe, meu discernimento me mostrou CLARAMENTE o óbvio, que elas eram tão "loucas" ou "normais" quanto eu, eram também pessoas que tinham coisas para resolver aqui, mas que foram EMPURRADAS para o mundo da loucura (um mundo real, sim) e da psicose a partir da ingestão de uma substância.
E também estava claro que havia INÚMERAS ENTIDADES (espirituais) ali, em diversas "dimensões", algumas de fato permitindo acessos sutis, mas grande parte na camada próxima em que a maioria se situava. E essas entidades de fato aguardavam os seus loucos e surtos, como se a reunião do daime fosse uma grande festa em que viam os encarnados antes estruturados ou estruturáveis rasgando a fantasia e rolando no chão com eles, em uivos, incorporações, danças, lágrimas e cantos. Uma bela festa, em alguns olhares. Mas uma festa da psicose SIM, em outro olhar.
> Uma dúvida que fica é: Qual é realmente o motivo de existir > substâncias com essas características? Supostamente, o estado que > proporcionam se assemelha a um estado de desenvolvimento avançado, > proporcionado condições parapsíquicas, sem passar pelos esforços > necessários para se alcançar essas condições de forma natural. Qual > seria a diferença entre os estados? Qual seriam as desvantagens? Até > que ponto o estado proporcionado pela droga é realmente confiável?
Aí a questão passa a ser: De fato há encontro espiritual na psicose. Mas há grande risco de psicose ao forçarmos encontros espirituais, ainda mais via recursos violentos. NÃO TENHO A MENOR DÚVIDA de que a fronteira entre loucura e êxtase é pequena. Mas há um diferencial nisso, que é o que faz algo ser produtivo e / ou saudável, e que é JUSTAMENTE nossa capacidade de reunir esses conteúdos todos, e quem faz isso é o "ego", a "mente", a "consciência", isso que alguns de lá tanto tentam derrubar. Sem ego, sem reunião, aquilo passa a ser uma grande viagem, não diferente das de LSD ou dos sonhos inconscientes, sem maiores consequências diretas na espiritualidade de cada um.
> quando me contaram que "viram hare krishna criando o mundo jogando > luz para todo lado enquanto todos o seguiam cantando e > dançando...". Ouvi como o sujeito relatava aquilo como experiência > irrefutável de contato com o divino,
Pois então. Se o sujeito DE FATO tivesse se encontrado com o divino, e o divino fosse o da mitologia hindu, ele jamais diria que viu "HARE KRISHNA" criando o mundo, porque não há entidade com esse nome (HARE é uma saudação, e HARE KRISHNA é o nome de uma religião e uma frase de um mantra). Quem cria o mundo ali é Brahman, o tal do OM. Aliás, nem Krishna é o próprio Deus criador, e sim uma encarnação de Vishnu. Logo, não pode ter sido KRISHNA, um avatar que viveu aqui, o tal criador.
Ah, mas o sujeito não precisaria saber disso tudo, ele dirá. Eu concordo. Mas DEUS certamente sabe. Se a visão se dá a partir do que ele NÃO SABE de hinduismo, mas se estrutura a partir de mitos que ELE, humano, acha que sabe, está mais que claro que o tal "contato divino" se deu no campo do inconsciente do sujeito. Ele não precisaria saber; mas Deus, sim.
> enquanto eu acabava de sair de uma sessão de tortura que me > mostrou todos os meus defeitos, destruindo meu ego e me mostrando > tudo que eu sou capaz de me tornar.
Vamos por partes. Ver os defeitos pode ser bem mais interessante do que achar que viu o deus "Hare Krishna" (sic) criando o mundo. Fazemos isso também em psicanálise, respeitando o tempo e a produção inconsciente própria do sujeito. Sou a favor.
O problema é que a mente também é sábia, e tem seu tempo para ver essas coisas, ou elaborá-las em sintomas, neuroses, sonhos e amadurecimento. O recalque e esquecimento é, antes de tudo, uma proteção psíquica contra conteúdos que, se revelados para alguns, seriam traumáticos demais. Essa lembrança tem que se dar aos poucos, pela lembrança consciente de quem recalcou.
Acontece que após tomar um chá violento que te faz MERGULHAR no seu inconsciente, você certamente encontrará tudo o que há lá: divindades equivocadas, sua sombra, seus piores defeitos, o alicerce que estruturava seu (indispensável) ego. E você é solto ali sem muita consciência, sem freios, sem poder dizer "pare agora", mais ou menos como um elefante bêbado que é solto numa loja de cristais - e justamente os cristais que, bem ou mal, você tinha estruturado para sobreviver AQUI, onde precisará continuar a ser coerente assim que o barato do daime passar...
Outra coisa é essa conversa de "destruir meu ego". Ego não é egoismo, ego não é o defeito, ego não é o diabo. Ver seus defeitos pode ter "abalado seu orgulho", e isso é bom, mas não é sinônimo de "destruir seu ego", senão você não estaria lembrando da experiência e a estruturando adequada e produtivamente aqui em bom português.
EGO é apenas um complexo psíquico de reunião de conteúdos diversos, que, na falta de outra referência, lhe permite termos de comparação, lembranças, julgamentos, raciocínio, discernimento e decisão. Sem ele, FATALMENTE estamos na loucura. Se alguém usa seu ego de forma ruim, egoista, fria, preconceituosa, isso não é culpa do EGO, e sim do caráter e espírito do tal sujeito. Logo, esse mesmo é que não pode nem deve destruir seu ego, pois aí se verá cara a cara com seu próprio espírito, que pelo jeito ainda não era flor que se cheirasse.
Outra coisa é você descrever o processo como UMA SESSÃO DE TORTURA. Pois é, evolução não é pra ser uma sessão de tortura, e somos jogados aqui na Lila de Maya (brincadeira divina, em um mundo de ilusões) para brincarmos de viver, enquanto reunimos conteudos em busca de sabedoria. Muitas vezes, brincando, levamos 10 anos para que nossas repressões "chovam" na vida na forma de uma neurose qualquer, quando tivermos condições de a compreender.
Tomar daime e ter "sessões de tortura" em ritos psicóticos onde o inconsciente desaba de uma vez só sobre nossas cabeças, esfacelando nosso ego e mostrando TUDO o que fizemos de errado e TUDO o que, podendo, ainda não conseguimos ser, pode até ser motivante e tapa na cara para um, mas CERTAMENTE é perigoso para a maioria. Pode levar à loucura, e, ainda que útil em certos processos individuais, me parece que não compensa para a maioria, e NÃO É coisa para que sejamos submetidos a cada mês. Especialmente se a intenção for guardar um MÍNIMO de normalidade para vivermos bem a vida aqui, no plano em que NECESSITAMOS encarnar, sem fugirmos da realidade em fáceis devaneios "espirituais" de uma tarde só.
Lázaro Freire www.voadores.com.br/lazaro -- Lázaro Freire lazarofreire@voadores.com.br
Deixe seu comentário |
|
|